Crianças e uso precoce de tecnologia: existem mesmo os “nativos digitais”?

17/09/2023

Entenda os riscos de o cérebro desenvolver apenas a cognição digital e não mais a cognição padrão.

Cada vez mais nos deparamos com crianças pequeninas que nem sabem falar direito, mas que já parecem ter muita destreza no uso de seus celulares e tablets. Seriam os considerados “nativos digitais”? Esse termo foi cunhado pelo professor norte-americano Marc Prensky para identificar as pessoas que estão crescendo imersas na cultura digital e que parecem ter capacidades diferenciadas para isso, ou seja, pessoas da Geração Z (nascidos entre 1997 e 2010) e, mais ainda, da Geração Alfa (nascidos a partir de 2010).

Alguns ainda acreditam que os “nativos digitais” desenvolvem mais rapidamente habilidades específicas em contato com a tecnologia, como processar múltiplas vias de informação ou usar intuitivamente as ferramentas tecnológicas. Porém, tais pressupostos não conseguiram ser comprovados por inúmeros estudos até hoje, entre eles um artigo publicado em 2017 na revista Teaching and Teacher Education (1), que afirmou que o conceito de “nativo digital” é um verdadeiro mito.

Michel Desmurget, pesquisador e neurocientista francês, também reuniu em seu polêmico livro “A fábrica de cretinos digitais – Por que, pela primeira vez na história, filhos têm QI inferior ao dos pais”(2) várias pesquisas científicas para mostrar que os “nativos digitais” não existem de fato, que a disseminação desse mito na verdade apresenta segundas (e bem caras!) intenções em vários planos: no doméstico, para tranquilizar os pais ao levá-los a crer que suas crianças são verdadeiros gênios da tecnologia digital, ainda que só saibam utilizar alguns aplicativos e jogos triviais; e no escolar, tentando sustentar a digitalização obrigatória dos sistemas de ensino apesar de performances inquietantes e/ou desastrosas. No mês passado mesmo, a UNESCO lançou um apelo às escolas para que proibissem smartphones nas salas de aula (3), prática que já vem sendo realizada em muitos países da Europa.

Então, se nossas crianças não são “nativas digitais”, se seus cérebros não nasceram diferenciados para essa era, qual o risco de darmos tecnologia nas mãos delas de forma ilimitada ou precoce?

O uso de telas tem um impacto direto no neurodesenvolvimento em geral, mais precisamente nas estruturas de processamento cognitivo. Podemos entender por cognição o produto de atividades mentais conscientes, como pensar, aprender, recordar. Com o uso de tecnologia, essa cognição se altera para o que o Dr. Cristiano Nabuco(4), psicólogo brasileiro e um dos maiores especialistas em Dependências Tecnológicas do mundo, chamou de Cognição Digital, ou seja, um jeito diferente de pensar, aprender e criar, porém mais limitado em muitos aspectos. Essa Cognição Digital inclui formas mais superficiais de funcionamento como escaneamento rápido das informações, trocas de atenção mais rápidas e não-lineares por causa do comportamento multitarefa (tentar fazer várias atividades ao mesmo tempo, o que gera sobrecarga cognitiva), diminuições expressivas na capacidade de concentração e foco, perda do poder de memorização e consequente diminuição da capacidade de ler com criticidade e aprender de forma profunda.

Então, um dos grandes riscos de expormos nossas crianças ao uso abusivo ou precoce de tecnologia é que elas poderão desenvolver mais a cognição digital e não tanto ou de forma suficiente a cognição padrão responsável pelo bom funcionamento mental como um todo e que propicia o aprendizado profundo, a criticidade, a criatividade, as capacidades de atenção, concentração, foco e memorização, entre outras habilidades importantíssimas. Isso em relação à cognição, fora outros prejuízos à saúde: emocionais (mais suscetibilidade a transtornos diversos como de personalidade, de ansiedade ou depressivo, por exemplo), físicos (quanto mais telas, menos tempo de contato com a natureza, menos exercícios físicos e menor quantidade e qualidade do sono) e espiritual (se não há espaço para tédio, silêncio, interiorização, contemplação, paciência, aceitação, não há o suficiente desenvolvimento da percepção de SER, apenas de TER ou FAZER).

É por isso que não é aconselhável dar nenhum tipo de tela para uma criança menor de 2 anos de idade? Sim!

Vamos focar a atenção na primeiríssima infância (os primeiros 1000 dias de vida de um bebê). Nessa fase, é formada a maioria dos feixes de neurônios no cérebro do bebê, que são cruciais para a neuroplasticidade (capacidade que o sistema nervoso central constrói para se adaptar e moldar a situações novas ao longo da existência) e seu consequente desenvolvimento para o resto da vida e em todas as áreas. A criança considerada saudável tem uma tendência inata ao desenvolvimento físico e emocional, mas precisa encontrar condições suficientemente boas  para isso, devidamente providas por seus responsáveis ou cuidadores. Se ela não encontra essas condições de estimulação (através dos cinco sentidos e das trocas afetivas) ou se somente algumas áreas do cérebro são delas super estimuladas (com as telas, a visão e audição são mais estimuladas e de um jeito passivo e viciante), teremos déficits em seu desenvolvimento. O uso de telas nessa idade impede o correto desenvolvimento cognitivo, de linguagem, motor e socioafetivo (relacionado à personalidade e ao caráter). Dessa forma, oferecer telas a uma criança de dois anos ou menos poderá atrapalhar gravemente seu desenvolvimento.

Então, basta não oferecer tela aos meus filhos? Não! Essa é metade da solução. É preciso também estimulá-los de maneira suficiente!

Se os pais ou cuidadores não permitem telas aos filhos, mas eles próprios ficam muito em suas telas, a estimulação boa e saudável também não acontecerá de forma suficiente. O uso da tecnologia nos deixa mais passivos, receptores, e não incentivadores e ativos. É preciso estimular um bebê, uma criança ou um adolescente falando com eles, conversando, brincando!!!, cantando, fazendo junto, com experiências reais e físicas, usando os cinco sentidos para um pleno desenvolvimento sensorial, neuropsicomotor e socioemocional. Não é possível fazer tudo isso olhando para uma tela. Segundo Desmurget (2), se “apenas” 50 minutos forem subtraídos da interação entre os pais e seu bebê por dia, em 24 meses (os dois primeiros nos do bebê, por exemplo) esses minutos totalizarão 600 horas! Esse tempo equivale a aproximadamente a duração da educação infantil escolar de um ano todo, ou, em termos de linguagem, a 200 mil enunciados perdidos, ou seja, mais ou menos 850 mil palavras não ouvidas pela criança. As musiquinhas da TV ou programas infantis, por exemplo, não substituem, de forma alguma, a interação direta com os pais e cuidadores, nem para o aprendizado de palavras, e muito menos para a educação afetiva.

Então, pais, cuidadores e educadores, além de não serem “nativos digitais”, nossas crianças e adolescentes nunca sentiram tanta falta de nossa presença analógica, de fato, para estimulá-los a se desenvolverem corretamente. Não é só o QI dos nossos filhos que pode ficar menor que os nossos, mas o QE (coeficiente que mede a saúde emocional) e todo o sentido de vida, de existência.

A tecnologia é maravilhosa quando bem usada (na idade adequada, com tempo limitado e conteúdo bem gerido), mesmo assim não substitui o contato real para que nossos pequenos aprendam o que é SER humano e como desenvolver toda sua potencialidade.

Até a próxima!

Cuide-se bem, sempre!

 

Carina Roma é Psicóloga Clínica, Neuropsicóloga e Especialista em Dependências Tecnológicas. Atua há 17 anos como Psicoterapeuta de jovens e adultos e Orientadora de Pais e Educadores. Conta com mais de 10 mil horas de atendimento a clientes de mais de 10 países. É casada há mais de vinte anos e tem três filhos, dois deles biológicos que hoje são adolescentes – Artur e Henrique - e uma do coração, na verdade sua irmã Natália que tem Síndrome de Down, mas que é considerada como filha querida desde que passou aos seus cuidados. Seu principal foco de trabalho é ajudar a melhorar a saúde mental e emocional das pessoas na nova era digital.

 

  1. https://www.nature.com/articles/547380a
  2. Livro: A fábrica de cretinos digitais – os perigos das telas para nossas crianças. Desmurget, M. São Paulo: Vestígio, 2021
  3. https://pt.euronews.com/next/2023/07/26/unesco-apela-as-escolas-que-proibam-smartphones-nas-salas-de-aula
  4. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg3x30z9q8wo
  5. Livro: Dependência de Internet em crianças e adolescentes – fatores de risco, avaliação e tratamento. Young, K. S, Abreu, C. N. Porto Alegre: Artmed, 2019

Foto retirada do site www.bebemamae.com sem menção da origem.